Ao não estabelecer distinção entre reincidência específica ou genérica para definição de progressão de regime de pena de condenado por crime hediondo ou equiparado, o chamado pacote "anticrime" (Lei 13.964/2019) criou uma lacuna que abriu divergência de interpretação no Superior Tribunal de Justiça.
Até então, a situação era simplificadamente descrita no parágrafo 2º do artigo 2º da Lei dos Crimes Hediondos (Lei 8.072/1990): após o cumprimento de 2/5 (40%) da pena, se o apenado for primário; e de de 3/5 (60%), se reincidente.
O pacote "anticrime", no entanto, revogou essa norma, e introduziu o regime de progressão para a hipótese de crime hediondo no artigo 112 do Lei de Execução Penal (Lei 7.210/1984). O inciso VII diz que só progredirá após 60% da pena se "for reincidente na prática de crime hediondo ou equiparado".
Para a 5ª Turma do STJ, não importa se a reincidência é específica ou não: se o condenado por crime hediondo não é primário, a progressão se dará somente após 60% da pena cumprida no regime inicial.
Já para a 6ª Turma, se a reincidência não for específica em crime hediondo, então ocorre uma lacuna legislativa que impõe ao intérprete que faça analogia in bonam partem (em favor do réu).
A 5ª Turma defendeu o entendimento ao julgar o Habeas Corpus 583.751, em agosto. Por unanimidade, acompanhou o entendimento do ministro Felix Fischer, relator, segundo o qual a condição de reincidente, uma vez adquirida pelo sentenciado, estende-se sobre a totalidade das penas somadas.
Assim, não se justifica a consideração isolada de cada condenação e tampouco a aplicação de percentuais diferentes para cada uma das reprimendas, "mesmo após a recente modificação da Lei de Execução Penal", segundo o relator.
O réu no HC fora condenado por tráfico de drogas e afirmou na impetração que "a lei não contempla palavras inúteis e que a norma mais benéfica deve retroagir para beneficiar o réu".
A condenação anterior é de tráfico na modalidade privilegiada, no parágrafo 4º do artigo 33 da Lei de Drogas — a qual, segundo o próprio pacote "anticrime", não é hediondo.
Ao decidir, o ministro Felix Fischer cita a "atecnia" da lei, "ao não deixar clara a situação do apenado reincidente por crime comum e condenado por delito hediondo".
Se por um lado em momento algum o legislador exige que a reincidência mencionada no inciso VII seja específica, por outro deixa claro no inciso V que a exigência de 50% da pena para progressão destina-se somente ao primário. Assim, intui-se que ao não-primário deva exigir-se 60%.
O entendimento da 6ª Turma é diametralmente oposto, como ficou claro no julgamento do Habeas Corpus 581.315, encerrado na última terça-feira (6/10). O caso tratou de réu por homicídio — crime hediondo — que tinha condenação anterior por receptação — delito não-hediondo.
De forma unânime, o colegiado entendeu que, diante da lacuna legislativa, deve-se aplicar por analogia in bonam partem (em benefício do réu) para fazer valer o inciso VI-a do artigo 112, que prevê progressão após 50% do cumprimento a "condenado pela prática de crime hediondo ou equiparado, com resultado morte, se for primário".
Se o réu fosse reincidente específico em crime hediondo ou equiparado com resultado morte, a fração para progredir seria ainda mais alta: 70% da pena, conforme o inciso VIII.
O advogado do réu chegou a pleitear fração ainda mais benéfica. Argumentou que, se o pacote "anticrime" revogou o trecho da Lei de Crimes Hediondos que tratava de progressão, então deveria ser aplicada a regra da primeira redação do artigo 112 da Lei de Execução Penal, que exige apenas 1/6 da pena cumpridos.
"Isso não é viável. O fato de ter-se revogado a lei que alterou a redação do artigo 112, não impõe a restauração do dispositivo original. Tem-se que olhar a lei quando do fato e a lei atual, e ver qual é a mais benéfica. É a lei atual", explicou o relator, ministro Sebastião Reis Júnior.
HC 583.751
HC 581.315
Fonte: https://www.conjur.com.br/2020-out-08/stj-diverge-reincidencia-especifica-progressao-pena